sábado, 23 de março de 2013

NEOLOGISMOS E METALINGUAGEM


 NEOLOGISMOS E METALINGUAGEM: OS (DES)LIMITES DA PALAVRA EM ENSAIOS FOTOGRÁFICOS, DE MANOEL DE BARROS
André Almeida Alves PEREIRA1
Valdete Nunes SILVA2

RESUMO
A proposta desta comunicação é refletir sobre os recursos lingüísticos utilizados por Manoel de Barros em Ensaios fotográficos. O autor, que se vale da metalinguagem para a construção do texto literário em praticamente toda a sua obra, também possui como particularidade o uso recorrente de neologismos, seja ao atribuir novo sentido a palavras já existentes, seja por meio do emprego de palavras novas, não dicionarizadas, ou ainda, por meio de transposição de classes gramaticais. Ressalta-se que, neste livro, o poeta recorre à imagem para ornar o lirismo e a simplicidade do texto. Nesse sentido, a escolha das palavras não constitui apenas um modo de articular a beleza e a fruição, próprios da poesia, mas consiste em um jogo no qual subjazem uma reflexão sobre a língua portuguesa e a literatura. Pretende-se, portanto, analisar a construção do discurso e os efeitos de sentido que a metalinguagem e os neologismos produzem na composição poética de Ensaios fotográficos.

PALAVRAS-CHAVE: poesia, neologismo; metalinguagem.
Que a beleza foi musa inspiradora dos mais lindos versos que saíram das mãos de poetas desde Shakespeare a Drummond não é novidade; muito menos que feitos grandiosos foram relatados em epopeias extraordinárias por mãos como as de Homero e Camões. Mas eis que surge a poesia de Manoel de Barros, que, contrária ao senso comum, se faz despretensiosa da linguagem difícil, se quer inútil, desimportante e povoa páginas com tudo que use o abandono por dentro e por fora.

O poeta assim se apresenta ao mundo: Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão. É a partir dessa citação, que dialoga com sua visão de mundo, sua simplicidade e seu gosto pela terra, que duas indagações se fazem possíveis: de que é feito o poema? De que se faz o poeta?

Em se tratando de Manoel de Barros, são prováveis as seguintes respostas: o poema é feito de palavras; e o poeta é feito de poesia. Palavras que levam à reflexão sobre a linguagem, poesia que traduz a pureza do olhar do poeta sobre a natureza, o simples, o belo. A linguagem reinventada.

A partir dos títulos de suas obras, como se pode perceber em Livro das ignorãças, Retrato do artista quando coisa, Poesia quase toda, O fazedor de amanhecer, o autor já se anuncia um experimentador da língua, um artista da palavra que se vale de recursos lingüísticos para sua construção poética.

Entretanto, compreender as influências na produção de Manoel de Barros não é tarefa fácil. Profundo conhecedor da proposta simbolista, inspira-se em Arthur Rimbaud para mesclar os sentidos da poesia, para experimentar os “deslimites da palavra”. A forma e o conteúdo próprios dos versos tradicionais também não são preocupações em seu exercício poético. Contrariamente, o poeta parece embeber-se na poesia de Mallarmé ao dialogar com o branco da página.

Há, também, a influência da arte moderna que, segundo o próprio autor, lhe fez entender a lógica da poesia, de permitir que "uma árvore não seja mais apenas um retrato fiel da natureza: pode ser fustigada por vendavais ou exuberante como um sorriso de noiva”. Os estudos sobre as artes plásticas contribuem para a beleza dos versos escritos pelo poeta, como se pode perceber, em toda a sua obra, referências a vários pintores, como Picasso, Miró, Van Gogh e Braque. Além disso, são recorrentes em sua produção vários elementos visuais que remetem tanto a arte naïve – pela simplicidade dos referentes e a pintura destes sobre o papel – quanto a uma arte mais elaborada, como a collage, numa sobreposição de objetos descartados, inutilidades, latas enferrujadas, insetos e detritos. O desafio se apresenta e se supera imediatamente à nossa frente: o de fazer poesia com os restos.

Mas tais elementos não servem de subterfúgio para descartar o estudo no campo lingüístico da obra manoelina, que se destaca pelos constantes neologismos e metáforas, rompendo com os limites impostos pela língua e dilatando as possibilidades da criação artística.

Ensaios fotográficos é o “retrato” perfeito de como os recursos lingüísticos são articulados no trabalho de Manoel de Barros. Poesia auto-explicativa, metalinguagem e neologismos são elementos que compõem esse livro, constatadas no “texto a germinar sobre o branco do papel”; ou ainda, quando “as palavras se sujam de nós na viagem, mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas”.

Dividido em duas partes – Ensaios Fotográficos e Álbum de Família – o livro não encerra em si unicamente poesias relacionadas ao tema proposto, mas apresenta uma estrutura própria de exposições fotográficas – na primeira parte – e de álbuns particulares – na segunda – se considerarmos a fragmentação da obra em fotografias e os títulos dos poemas como se fossem legendas afixadas ao lado delas: Comparamento, Despalavra, O vento, Miró; e Auto-retrato, O poeta, A doença, O provedor.

Se, por um lado, é possível perceber a influência das artes visuais no texto de Manoel de Barros, por outro podemos “ancorar” sua poesia ao lado de vários outros precursores dos neologismos. Camões, por exemplo, já apontava para o desenvolvimento da língua portuguesa, que ainda não possuía a riqueza vocabular de hoje. Contrariando a opinião dos conservadores de sua época, que consideravam os neologismos uma afronta à língua, buscou nos radicais gregos e latinos a formação de novas palavras para que a língua enaltecesse seu texto poético. É a partir da criação do poeta lusitano que compreendemos, hoje, o que vem a ser mundo, o que é estupendo, crepitante, ebúrneo, que indômito é o mesmo que bravo, e que láctea diz respeito à nossa galáxia.

Cruz e Souza, um dos maiores expoentes do Simbolismo brasileiro, também faz uso de neologismos em seu processo criativo. Em Broquéis, um de seus mais conhecidos livros, podemos ler em “Afra” a expressão “carne explosiva em pólvoras e fúria”, ou ainda, o título de um outro poema: “Acrobata da dor”. São também dele a criação das expressões crepusculamentos enlanguescentes, as belezas translucentes, as músicas clarinantes a violinar ritmalmente.

Já no Modernismo, temos o poeta Manuel Bandeira que, se dizendo inventor de “palavras que traduzem a ternura mais funda”, deu à literatura brasileira um dos mais belos verbos – teadorar. E a partir do neologismo criado, sua conjugação no intransitivo: Teadoro, Teodora.

Guimarães Rosa, inigualável inventor de palavras, à maneira de Camões, utiliza radicais gregos e latinos e busca, ainda, outros elementos da língua indígena e dos dialetos africanos para compor os processos de formação de seus neologismos, mostrando-nos, assim, como a língua é rica e que dela provém muito da magia literária.

Quem há de negar a beleza proposta pela conjugação do verbo intransitivo da poesia de Bandeira? Ou na musicalidade que encontramos nos vocábulos inventados por Cruz e Souza? E o que dizer, então, do grande mestre Guimarães Rosa, cuja linguagem reverbera sobre si mesma? As palavras são, portanto, instrumento de criação dos poetas.

Em Ensaios fotográficos, o desejo de apurar a reinvenção verbal se faz a partir da associação dos significantes e significados, o que nos permite ver que na Língua Portuguesa uma palavra é capaz de se transformar em várias, conforme o desejo do poeta. Tal arbitrariedade se evidencia, por exemplo, no excerto do poema “Despalavra”:
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore.

Em “O Fotógrafo”, poema que abre a série dos “ensaios”, o trabalho com as palavras faz surgir tanto a metalinguagem quanto os neologismos que provocam a reestruturação gramatical na poesia manoelina:
(...)
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei o carregador.
(...)
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.

O texto é vestido com a metáfora do fotógrafo que, munido de sua câmera, erra pela madrugada registrando os mais sutis “objetos”: o silêncio, o perdão, o perfume, a existência, o sobre. Encerrada ainda no poema, há uma reflexão sobre o processo criativo no qual o poeta (fotógrafo) vasculha a mente (aldeia) à procura das idéias (imagens) assim que se projetam.

A metalinguagem pode ser analisada, também, em “Comparamento”:
Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau, folhas secas, penas de urubu E demais trombolhos. Seria como o percurso de uma palavra antes de chegar ao poema. As palavras, na viagem para o poema, recebem nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades. E demais escorralhas. As palavras se sujam de nós na viagem. Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas. E livres das tripas do nosso espírito.

Nesse poema, a filosofia serve de pano de fundo para versos que comparam o percurso de um rio ao percurso das palavras, aquele recebendo “trambolhos” ao longo do caminho, este recebendo “escorralhas” antes de desembocar na página.

Seria possível acreditar na capacidade da fotografia de capturar o sentimental perdão e o invisível perfume? A metafísica existência e o abstrato sobre? Os neologismos em Manoel de Barros não acontecem simplesmente na formação de novos vocábulos a partir da junção de prefixos e sufixos, mas na ressignificação de termos e objetos com características pré-determinadas e por demais desgastadas, como é o caso dessa fotografia que capta o que os olhos não conseguem ver.

Outro exemplo é encontrado neste trecho de “Ruína”: “O abandono pode ser também (...) de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (...) digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela.” O poeta ressignifica a palavra “amor” ao dizer que Não tem gente dentro dela. Concomitantemente, a palavra “gente”, que no sentido comum abrigaria o “amor”, torna-se passível desse abrigo.

Retomando o poema “O Fotógrafo”, encontramos uma inversão de classes gramaticais no verso Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado. O silêncio, até então considerado um substantivo, nesse caso, torna-se sujeito, atribuindo a “bêbado” a posição de agente da passiva.

Em “Palavras”, o autor abstém-se da responsabilidade a ele conferida de desestruturar a linguagem:
Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que uma palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com sua flauta de couro. O grilo feridava o silencio. Os moradores do lugar se queixam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.

As palavras, antes apenas passivas das vontades do poeta, tornam-se, agora, agentes que
detém o poder da ação. Elas são capazes de tirar o lugar de debaixo do poeta, de retirar o grilo de sua flauta.
Já o poema “Línguas” traz um toque de bom humor aliado ao tema da “desimportância” e ainda arranjos que possibilitam analogias aos vários significados da palavra língua:
Contenho vocação para não saber línguas cultas.
Sou capaz de entender as abelhas do que alemão.
(...)
A única língua que estudei com força foi a portuguesa.
Estudei-a com força para poder errá-la ao dente.

Nos dois primeiros versos há claramente uma transgressão gramatical ao ser suprimido o termo “mais” que completaria a comparação desejada. E na segunda estrofe podemos entender a expressão “errá-la ao dente” como sendo 1) o ato de cometer um desvio ortográfico ou gramatical; 2) não permitir que o conhecimento da língua refreie a criatividade, mas ao contrário, que permita dar novos sentidos às palavras, fazendo-as vagarem pelo mundo das significações; 3) “al dente”, como na expressão italiana que significa “no ponto certo”, no sentido de saber até onde é possível experimentar; 4) a língua como órgão que é utilizada para a fala e recorre aos dentes para reproduzir determinados sons.

Ensaios fotográficos é, pois, a linguagem indiferente ao comportamento das coisas. É lirismo, simplicidade, prazer, gozo Os “desvios” do poeta têm como finalidade apenas a sua própria volição: realizar a “tarefa mais lídima da poesia, que é a de equivocar o sentido das palavras”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Ieda Maria. Neologismo – criação lexical. São Paulo: Ática, 2004.
BARROS, Manoel de. O livro sobre nada.11ª.ed.Rio de Janeiro: Record, 2004,
_____. Retrato do artista quando coisa. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007,
_____. Ensaios Fotográficos. 7ª.ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
SOUZA, Cruz e. Broquéis. São Paulo: Martin Claret, 2002.

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Um comentário:

marcia disse...

Obrigada professor......bjus