domingo, 16 de setembro de 2012

SOBRE A ARTE, EM "A ALMA HUMANA", DE OSCAR WILDE


UM PEQUENO RECORTE, UM EXCERTO, DE UM LONGO ARTIGO DE UM AUTOR DE QUE POUCO SE CONHECE, ALÉM DO QUE SE DISSE DELE À LUZ DA DISCRIMINAÇÃO POR SUA FRIVOLIDADE: OSCAR FINGAL O´FLAHERTIE WILLS WILDE - EM A ALMA HUMANA.

Marco Bastos

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Isto é Utópico? Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras a que a Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, toma a içar velas. O progresso é a concretização de Utopias. Afirmei que a sociedade, por meio da organização da maquinaria, fornecerá o que é útil; - 15 - o que é belo será criado pelo indivíduo. Isto não só é necessário, como é o único meio possível de obtermos um ou outro. Um indivíduo que tenha de produzir artigos destinados ao uso alheio e à satisfação de necessidades e expectativas alheias, não trabalha com interesse e, conseqüentemente, não pode pôr em seu trabalho o que tem de melhor. Por outro lado, sempre que uma sociedade, ou um poderoso segmento da sociedade, ou um governo de qualquer espécie, tenta impor ao artista o que ele deve fazer, a Arte desaparece por completo, toma-se estereotipada, ou degenera em uma forma inferior e desprezível de artesanato. Uma obra de arte é o resultado singular de um temperamento singular. Sua beleza provém de ser o autor o que é, e nada tem a ver com as outras pessoas quererem o que querem. Com efeito, no momento em que um artista descobre o que estas pessoas querem e procura atender a demanda, ele deixa de ser um artista e toma-se um artesão maçante ou divertido, um negociante honesto ou desonesto. Perde o direito de ser considerado um artista. A Arte é a manifestação mais intensa de Individualismo que o mundo conhece. Acho-me inclinado a dizer que é a única verdadeira manifestação sua que ele conhece. Em determinadas condições, pode parecer que o crime tenha dado origem ao Individualismo. Para a execução do crime é preciso, no entanto, ir além da alçada própria e interferir na alheia. Pertence à esfera da ação. Por outro lado, sozinho,sem consultar ninguém e livre de qualquer interferência, o artista pode dar forma a algo de belo; e se não o faz unicamente para sua própria satisfação, ele não é um artista de maneira alguma. Cumpre observar que é o fato de ser a Arte essa forma intensa de Individualismo que leva o público a procurar exercer sobre ela uma autoridade tão imoral quanto ridícula, e tão aviltante quanto desprezível. A culpa não é verdadeiramente do público. Este nunca recebeu, em época alguma, uma boa formação. Está constantemente pedindo à Arte que seja popular, que agrade sua falta de gosto, que adule sua vaidade absurda, que lhe diga o que já lhe disseram, que lhe mostre o que já deve estar farto de ver, que o entretenha quando se sentir pesado após ter comido em demasia, e que lhe distraia os pensamentos quando estiver cansado de sua própria estupidez. A Arte nunca deveria aspirar à popularidade, mas o público deve aspirar a se tornar artístico. Há nisso uma diferença muito ampla. Se disséssemos hoje a um cientista que os resultados de seus experimentos e as conclusões a que chegou deveriam ser de uma tal natureza que não abalassem as noções populares firmadas sobre o assunto, nem contrariassem o preconceito popular ou ferissem a sensibilidade dos que nada entendam de - 16 - ciência; se disséssemos hoje a um filósofo que ele teria o pleno direito de especular nas esferas mais elevadas do pensamento, conquanto chegasse às mesmas conclusões defendidas por aqueles que nunca refletiram em esfera alguma - bem, o cientista e o filósofo achariam muita graça nessas sugestões. Mas, alguns anos atrás, a filosofia como a ciência viram-se sujeitas ao brutal controle popular, à autoridade quer da ignorância geral da comunidade, quer do terror e sede de poder de uma classe eclesiástica ou governamental. Evidentemente, conseguimos em grande medida nos livrar de qualquer tentativa, por parte da comunidade, da Igreja ou do Governo, de interferência no Individualismo do pensamento especulativo, mas ainda persiste a tentativa de interferência no Individualismo da arte da imaginação. Com efeito, faz mais do que persistir: é agressiva, ofensiva e embrutecedora. Na Inglaterra, as artes que melhor resistiram a essa interferência são aquelas pelas quais o público não se interessa. A poesia é um exemplo disso. Podemos ter uma poesia elevada na Inglaterra porque o público inglês não a lê e, conseqüentemente, não a influencia. O público gosta de insultar os poetas por serem indivíduos singulares, mas uma vez insultados, são deixados em paz. No caso do romance e do drama, artes pelas quais o público tem real interesse, o resultado do exercício da autoridade popular tem sido completamente ridículo. Nenhum outro país produz ficção tão mal escrita, obras tão maçantes e banais na forma de romance, e peças tão estúpidas e vulgares. E é forçoso que seja assim. O padrão popular é de uma natureza tal que nenhum artista consegue atingi-lo. E a um tempo muito fácil e muito difícil ser romancista popular. É muito fácil porque as exigências do público quanto a enredo, estilo, psicologia, tratamento da vida e tratamento da literatura estão ao alcance da compreensão mais mediana e do espírito mais inculto. É muito difícil porque, para satisfazer essas exigências, o artista teria de cometer uma violência a seu temperamento, teria de escrever não pelo prazer artístico de escrever, mas para o entretenimento de pessoas semi-educadas, e assim reprimir sua individualidade, esquecer sua cultura, destruir seu estilo e renunciar a tudo que lhe seja precioso. No caso do drama, as coisas andam um pouco melhor: o público que vai ao teatro aprecia o óbvio, é verdade, mas não gosta do que é tedioso; e a comédia burlesca e farsesca, as duas formas mais populares, são formas de arte distintas. É possível fazer obras agradáveis em condições burlescas e farsescas, e na Inglaterra se permite ao artista uma liberdade muito grande na criação de obras desse gênero. É quando se chega às formas mais elevadas do drama que se vêem os efeitos do controle popular. A única coisa de que o público - 17 - não gosta é inovação. É extremamente avesso a qualquer tentativa de se ampliar o universo temático na criação, quando, no entanto, dessa constante ampliação depende em larga medida vitalidade e o progresso da Arte. O público não gosta de inovação porque a teme. Representa para ele uma forma de Individualismo, uma afirmação por parte do artista de que ele mesmo escolhe o seu tema e o trata como lhe convém. A Arte é Individualismo, e o Individualismo é uma força inquietante e desagregadora. Nisto reside seu grande valor, pois o que procura subverter é a monotonia do tipo, a escravidão do costumeiro, a tirania do habitual e a redução do homem ao nível da máquina. Na Arte, o público aceita o convencional por não poder alterálo, mas não porque o aprecie. Engole seus clássicos por inteiro, sem degustá-los. Suporta-os como ao inevitável. E já que não podem digeri-los a seu gosto, ruminam. De modo assaz estranho, ou nada estranho, segundo a visão de cada um, essa aceitação dos clássicos causa um grande mal. Um exemplo disso é a admiração ingênua que na Inglaterra se tem pela Bíblia e por Shakespeare. Quanto à Bíblia, entram em discussão considerações de domínio eclesiásticos, de modo que não há por que deter-me no assunto. Mas no caso de Shakespeare é bastante evidente que, na verdade, o público não vê nem a beleza nem as falhas de suas peças. Se lhes visse a beleza, não se oporia ao aperfeiçoamento do drama; se lhes visse as falhas, tampouco se oporia a ele. O fato é que o público usa os clássicos de uma nação como um meio de deter o progresso da Arte. Degrada os clássicos em autoridades. Utiliza-os como clavas para impedir a livre expressão do Belo em novas formas. Está sempre perguntando a um autor por que não escreve como algum outro, ou a um pintor por que não pinta como algum outro, esquecido por completo de que, se qualquer um deles fizesse alguma coisa dessa sorte, deixaria de ser um artista. Uma nova forma do Belo desagrada sobremaneira o público, o qual fica, a cada vez que ela surge, tão irritado e confuso que acaba por empregar duas expressões estultas - uma, que a obra é completamente ininteligível; outra, que a obra é completamente imoral. O sentido que dá a essas palavras parece ser o seguinte. Quando afirma que uma obra é ininteligível, entende com isso que o artista disse ou fez algo de belo e novo; quando descreve uma obra como imoral, entende com isso que o artista disse ou fez algo de belo e verdadeiro. A expressão anterior refere-se ao estilo; ã segunda, ao tema. Mas é provável, que o público empregue indiscriminadamente ambos esses atributos, à maneira da plebe que atira pedras do calçamento. Não há um só verdadeiro poeta ou prosador deste século, por exemplo, a quem o público inglês não tenha - 18 - solenemente outorgado diplomas de imoralidade. Esses diplomas praticamente equivalem entre nós ao que na França é o reconhecimento formal por uma Academia de Letras, tomando felizmente desnecessária na Inglaterra a criação de uma instituição para esse fim. Naturalmente, o público é muito imprudente no uso da palavra. Era de esperar que chamasse Wordsworth um poeta imoral. Afinal Wordsworth era um poeta. Mas é surpreendente que chamasse Charles Kingsley um romancista imoral. A prosa de Kingsley não era de grande qualidade. Mas a palavra existe, e o público a emprega o melhor que pode. Um artista não se deixa, evidentemente, perturbar por- ela. O verdadeiro artista é um homem que acredita absolutamente em si mesmo, porque é absolutamente ele mesmo. Mas posso imaginar que - se um artista criasse entre nós uma obra de arte que, imediatamente após seu lançamento, fosse reconhecida pelo púbico, através de seu meio de expressão, a Imprensa pública, como uma obra bastante inteligível e sumamente moral - este artista começaria a questionar seriamente se ele foi ele próprio na criação dessa obra e, portanto, se ela não lhe seria de todo indigna, ou então de qualidade inferior ou desprovida de qualquer valor artístico. Talvez tenha sido injusto com o público ao limitá-lo a palavras como "imoral", "ininteligível", "exótico" e "doentio". Há ainda uma outra palavra que ele costuma empregar. "Mórbido". Não a usa com freqüência. O significado dessa palavra é tão simples que tem receio de usá-la. Mas de quando em vez depara-se com ela nos jornais populares. É, naturalmente, uma palavra ridícula para se aplicar a uma obra de arte. Pois o que é morbidez senão um estado emocional que não se pode exprimir? O público é sempre mórbido, pois nunca consegue exprimir coisa alguma. O artista jamais é mórbido. Ele expressa tudo. Está além de seu tema e, através de seu meio de expressão, produz efeitos artísticos e incomparáveis. Chamar um artista de mórbido porque trata do tema da morbidez é um disparate tão grande quanto chamar Shakespeare de louco porque escreveu Rei Lear. Na Inglaterra, quase sempre, o artista ganha alguma coisa com ser atacado. Fortalece sua individualidade. Toma-se mais completamente ele mesmo. Os ataques, é claro, são muito grosseiros, impertinentes e desprezíveis. Mas, da mentalidade vulgar e do intelecto suburbano, artista algum espera elegância ou estilo. A vulgaridade e a estupidez são dois fatos muito presentes na vida moderna. Nós os lamentamos, evidentemente. Mas são uma realidade. Constituem matéria para estudo, como qualquer outra coisa. Nada mais justo afirmar, com relação aos jornalistas modernos, que eles sempre se desculpam com alguém em particular, - 19 - pelo que escreveram contra esse alguém em público. Nos últimos anos, acrescentaram-se dois outros adjetivos ao limitado vocabulário de injúrias à Arte que o público tem à sua disposição. Um é a palavra "doentio"; outro, a palavra "exótico". Esta última expressa meramente a fúria do cogumelo efêmero contra a orquídea imortal, extasiante e requintadamente adorável. É um tributo, mas um tributo sem nenhuma importância. A palavra "doentio", no entanto, admite análise. Com efeito, é tão interessante que aqueles que a usam não sabem seu significado. O que significa? O que é uma obra de arte doentia ou sadia? Todos os termos que se aplicam a uma obra de arte, se aplicados racionalmente, fazem referência a seu estilo ou a seu tema, ou a ambos. Do ponto de vista estilístico, uma obra de arte sadia é aquela cujo estilo reconhece a beleza do material utilizado, quer esse material seja palavras ou bronze, cor ou marfim, e usa essa beleza como um fator na criação do efeito estético. Do ponto de vista do tema, uma obra de arte sadia é aquela cuja escolha temática é condicionada pelo temperamento do artista e dele provém diretamente. Em suma, uma obra de arte sadia é aquela que apresenta tanto perfeição quanto personalidade. Naturalmente, numa obra de arte não se podem separar forma e conteúdo, são sempre uma unidade. Mas, para fins de análise, e esquecendo por um momento a totalidade da impressão estética, podemos separá-las num plano intelectual. Uma obra de arte doentia, por outro lado, é uma obra cujo estilo é evidente, comum e ultrapassado, e cujo tema é escolhido deliberadamente, não porque o artista nele encontre prazer, mas porque acha que o público lhe pagará por ele. De fato, o romance popular que o público chama sadio é sempre uma criação completamente doentia; e o que o público chama um romance doentio é sempre uma obra de arte bela e sadia. É quase desnecessário dizer que não estou, em momento algum, lamentando que o público e a Imprensa pública empreguem inadequadamente essas palavras. Não vejo como poderiam empregá-las no sentido correto, diante de sua falta de compreensão do que seja a Arte. Estou apenas apontando o emprego inadequado; e quanto à origem dessa inadequação e ao significado que se encontra por trás de tudo isso, a explicação é muito simples. Provém do bárbaro conceito de autoridade. Provém da incapacidade de uma sociedade corrompida pela autoridade em entender ou apreciar o Individualismo. Numa palavra, provém daquela coisa medonha e ignorante que se chama Opinião Pública - bem ou mal-intencionada quando procura controlar a ação, mas infame e de intenções perversas quando procura controlar o Pensamento - 20 - ou a Arte. Com efeito, há muito mais a se dizer em favor da força física do público do que em favor da opinião do público. Aquela pode ser excelente. Esta última deve ser forçosamente tola. É costume dizer que força não é argumento. Isto, no entanto, depende tão-só do que se queira provar. Muitos dos mais importantes problemas dos últimos séculos, como o da continuidade do absolutismo na Inglaterra, ou do feudalismo na França, foram solucionados quase que exclusivamente por meio da força física. A própria violência de uma revolução pode tornar o público sublime e esplêndido por um momento. Foi um dia fatal aquele em que o público descobriu que a pena é mais poderosa que as pedras da rua, e que seu uso pode tornar-se tão agressivo quanto o apedrejamento. Procurou imediatamente pelo jornalista, o encontrou e aperfeiçoou, e fez dele seu servo diligente e bem pago. É de lamentar por ambos. Atrás das barricadas, muito pode haver de nobre e heróico. Mas o que há por trás de um artigo de fundo senão preconceito, estupidez, hipocrisia e disparates? E esses quatro elementos, quando reunidos, adquirem uma força assustadora e constituem a nova autoridade. Antigamente, os homens tinham a roda de torturas. Hoje têm a Imprensa. Isto certamente é um progresso. Mas ainda é má, injusta e desmoralizante. Alguém - teria sido Burke? - chamou o jornalismo de o quarto poder. Isto na época sem dúvida era verdade. Mas hoje ele é realmente o único poder. Devorou os outros três. Os Lordes temporais nada dizem, os Lordes espirituais * nada têm a dizer, e a Câmara dos Comuns nada tem a dizer e o diz. Estamos dominados pelo Jornalismo. Nos Estados Unidos, o Presidente reina por quatro anos e o Jornalismo governa para todo o sempre. Felizmente, nesse país, o Jornalismo levou sua autoridade ao extremo mais flagrante e brutal e, como decorrência lógica, começou a gerar um espírito de revolta: ou diverte ou aborrece as pessoas, conforme seu temperamento. Mas deixou de ser a força real que era. Não é levado a sério. Na Inglaterra, o Jornalismo, com exceção de alguns poucos exemplos bem conhecidos, não tendo atingido esses excessos de brutalidade, permanece ainda um fator de grande significado, um poder realmente notável. Parece-me descomunal a tirania que ele se propõe exercer sobre nossas vidas privadas. O fato é que o público tem uma curiosidade insaciável de conhecer tudo, exceto o que é digno de se conhecer. O Jornalismo, ciente disso, e com vezos de comerciante, satisfaz suas exigências. Em séculos passados, o público expunha as orelhas dos jornalistas no pelourinho. O que era horrível. Neste * Membros da Câmara dos Lordes, ou dos Pares, divisão superior do Parlamento inglês. Os lordes temporais são os que ocupam o direito e a cadeira por princípios de hereditariedade; os espirituais (bispos e arcebispos) são nomeados vitaliciamente. (N. do E.) - 21 - século, os jornalistas ficam de orelha em pé atrás das portas. O que é ainda pior. O mal é que os jornalistas mais culpados não estão entre aqueles que escrevem para o que se chama de coluna social. O dano é causado pelos jornalistas sisudos, graves e circunspetos que trarão, solenemente, como hoje trazem, para diante dos olhos do público, algum incidente na vida privada de um grande estadista, de um homem que é assim um líder do pensamento político como criador de força política. Convidarão o público a discutir o incidente, a exercer autoridade no assunto, a externar seus pontos de vista, e não somente a externá-los, mas a colocá-los em ação, a impô-los àquele homem sobre todos os outros argumentos, a impor ao partido e à nação dele; convidarão, enfim, o público a se tomar ridículo, agressivo e perigoso. A vida particular dos homens ou das mulheres não deveria ser revelada ao público. Este não tem nada absolutamente a ver com ela. Na França há um controle maior nesses assuntos. Lá não se permite que pormenores dos julgamentos que se realizam nos tribunais de divórcio sejam divulgados para entretenimento ou crítica do público. Tudo que se lhe permite saber é que houve o divórcio e que foi concedido a pedido de uma ou outra parte envolvida, ou de ambas. Na França, com efeito, limitam o jornalista, e concedem ao artista quase que completa liberdade. Aqui, concedemos liberdade absoluta ao jornalista e limitamos inteiramente o artista. A opinião pública inglesa, por assim dizer, procura tolher, cercear e submeter o homem que cria o Belo efetivamente, e compele o jornalista a recontar o factualmente feio, desagradável ou repulsivo; de modo que temos os mais sisudos jornalistas do mundo e os jornais mais indecentes. Não há exagero em se falar em compulsão. Há positivamente jornalistas que têm verdadeiro prazer em publicar coisas horríveis, ou que, por serem pobres, vêem nos escândalos uma fonte permanente de renda. Mas não tenho dúvidas de que há outros jornalistas, homens de boa formação e cultura, a quem realmente desagrada publicar esse tipo de assunto, homens que sabem ser errado agir assim e, se assim agem, é apenas porque as condições doentias em que exercem sua profissão os obriga a atender o público no que o público quer, e a concorrer com outros jornalistas para que esse atendimento satisfaça o mais plenamente possível o grosseiro apetite popular. É uma posição muito degradante para ser ocupada por qualquer desses homens, e não há dúvida de que a maioria deles percebe isso sensivelmente. Contudo deixemos o que vem a ser uma face muito sórdida do problema e voltemos à questão do controle popular na esfera da Arte. Por esse controle entendo a imposição da - 22 - Opinião Pública sobre o artista quanto à forma que ele deve usar, o modo em que deve usá-la e os materiais com que deve trabalhar. Salientei que na Inglaterra as artes que mais se preservaram são aquelas pelas quais o público não demonstra interesse. Mas demonstra pelo drama, e como se alcançou algum progresso nesse gênero nos últimos dez ou quinze anos, é importante ressaltar que esse progresso se deve exclusivamente a uns poucos artistas, indivíduos singulares que se recusam a aceitar como normal a falta de gosto popular e se recusam a considerar a Arte uma mera questão de oferta e procura. Personalidade ativa e admirável, autor de um estilo em que há um verdadeiro elemento de cor, e dotado de um poder excepcional, não sobre a mera imitação, mas sobre a criação imaginativa e intelectual - Mr. Irving, se tivesse como único objetivo dar ao público o que este quer, poderia ter escrito as peças mais comuns da maneira mais comum, e ter obtido tanto sucesso e dinheiro quanto um homem poderia almejar. Mas este não era seu objetivo. Era o de alcançar a própria perfeição enquanto artista, sob determinadas condições e em determinadas formas de Arte. No início, ele atraiu uns poucos; hoje educa a maioria. Criou no público gosto e temperamento. O público aprecia imensamente o seu sucesso. Freqüentemente me pergunto, porém, se o público compreende que esse sucesso se deve exclusivamente ao fato de que o autor não aceitou o padrão exigido por ele, mas formou o seu próprio. Aceitasse aquele padrão, e teria feito do Lyceum uma espécie de barraca de segunda categoria, à maneira de alguns teatros populares hoje em Londres. Quer o público entenda ou não isto, permanece no entanto o fato de que em certa medida criou-se nele esse gosto e temperamento e que o público é capaz de desenvolver essas qualidades. O problema está em saber por que não se toma mais civilizado. Capacidade ele tem; o que o impede? O que o impede, repita-se, é seu desejo de exercer autoridade sobre o artista e a obra de arte. A alguns teatros, como o Lyceum e o Haymarket, o público parece afluir com o estado de espírito adequado. Em ambos os teatros, houve artistas que conseguiram despertar em suas platéias - e cada teatro em Londres tem sua própria platéia - o temperamento que convém à arte. E qual é esse temperamento? É o da receptividade. Apenas isso. Se um homem aborda uma obra de arte com a intenção de exercer autoridade sobre ela e o artista, ele a está abordando com um tal espírito que lhe impede receber dela impressão artística. A obra de arte deve dominar o espectador, e não o espectador dominar a obra de arte. O espectador deve ser receptivo. Deve ser o violino em que o virtuose irá tocar. Quanto mais - 23 - completamente possa subjugar seus tolos pontos de vista, preconceitos descabidos, suas idéias absurdas do que deva ser a Arte, ou do que ela não deva ser - maiores chances terá de compreender e apreciar a obra de arte em questão. Isto é, naturalmente, muito claro no caso do público de teatros populares na Inglaterra. Mas vale igualmente para o que se chama pessoas cultas. Pois as idéias que uma pessoa culta tem da Arte são extraídas do que tem sido a Arte, ao passo que a obra de arte inovadora é bela por ser o que a Arte nunca foi; portanto avaliá-la segundo critérios do passado é avaliá-la segundo critérios de cuja recusa depende sua verdadeira perfeição. Somente poderá apreciar uma obra de arte aquele temperamento que é suscetível de receber impressões novas e belas, que lhe chegam graças ao meio e às condições próprias de expressão do imaginário. E se isto é Verdade no caso da apreciação da escultura e da pintura, é ainda mais Verdadeiro no caso da apreciação de artes como o drama. Pois um quadro e uma estátua não estão em luta contra o Tempo. Ambos não se dão conta de sua progressão. Basta-nos um só momento para apreender-lhes a unidade. Mas no caso da literatura é preciso que atravessemos no tempo para chegar à unidade de efeito. Assim, por exemplo, pode ocorrer, no primeiro ato de uma peça, alguma coisa cujo valor artístico real só ficará claro para o espectador no terceiro ou quarto ato. Deverá esse nosso tolo amigo zangar-se, gritar, perturbar a apresentação e atrapalhar os atores? Não. O homem consciencioso deve sentar-se tranqüilamente e conhecer as deliciosas emoções de surpresa, curiosidade e suspense. Ele não vai ao teatro para perder a calma, de maneira vulgar. Mas sim para dar realidade a um temperamento artístico. Para ganhar um temperamento artístico. Ele não é o juiz da obra de arte. É aquele a quem se permite contemplar a obra de arte e, se a obra for boa, esquecer, na contemplação, toda a vaidade que o prejudica - a vaidade de sua ignorância ou a de seu conhecimento. Acredito que raras vezes o caso do drama é objeto de suficiente consideração. Entendo perfeitamente que, se Macbeth fosse encenado pela primeira vez para lima platéia inglesa moderna, muitos dos presentes iriam se opor de modo enérgico à apresentação das bruxas no primeiro ato, com suas falas grotescas e suas palavras ridículas. Mas quando a peça termina, compreendemos que a risada das bruxas em Macbeth é tão terrível quanto a risada de loucura do Rei Lear e ainda mais terrível que a risada de lago na tragédia do Mouro. A nenhum espectador de Arte é tão necessário um perfeito espírito de receptividade quanto ao espectador de uma peça. No momento em que procurar exercer autoridade, ele se tornará o inimigo declarado da Arte, e dele próprio. À Arte isto pouco importa. Ele é quem sofre. - 24 - Com o romance dá-se o mesmo. A autoridade popular e o reconhecimento da autoridade popular são fatais. O Esmond de Thackeray é uma bela obra de arte porque ele a escreveu para agradar a si próprio. Em seus outros romances, em Pendennis, em Phillip, mesmo em Feira de Vaidades, tem demasiada consciência do público e põe sua obra a perder, quando faz um claro apelo aos sentimentos do público, ou quando zomba deles às claras. Um verdadeiro artista não dá atenção ao público. Este não existe para ele. Um artista não tem tortas recheadas com ópio ou mel com as quais adormeça ou anime o monstro. Deixa isso para o romancista popular. Temos hoje na Inglaterra um romancista incomparável, Mr. George Meredith. Há artistas melhores na França, mas a França não possui um cuja visão da existência seja tão ampla, diversa e imaginativamente verdadeira. Na Rússia há narradores dotados de um senso mais vívido do que seja o sofrimento na ficção. Mas a Mr. Meredith pertence a filosofia na ficção. Suas personagens não apenas vivem, mas vivem em pensamento. Pode-se vê-Ias de uma miríade de pontos de vista. São inspiradas. Há almas nelas e à sua volta. São interpretativas e simbólicas. E aquele que as criou, a essas figuras maravilhosas em seus movimentos ágeis, criou para sua própria satisfação, sem jamais perguntar ao público o que ele queria, sem jamais se importar em saber o que ele queria, sem jamais permitir ao público fazer-lhe imposições ou influenciá-lo de algum modo, mas continuando sempre a afirmar sua personalidade e a produzir seu próprio trabalho. De início, ninguém o procurou. Isto não o preocupou. Então alguns poucos o procuraram. Isto em nada o mudou. Muitos o procuram agora. Ele permanece o mesmo, um romancista incomparável.
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2 comentários:

Jorge Sader Filho disse...

Um longo e meticuloso trabalho, amigo Marco.
Entendo como a maioria. A arte não pode estar sujeita a ditames de quem quer que seja, ou se torna objeto de consumo. A liberdade do artista é essencial, vital.
Paro por aqui, para não acabar escrevendo uma monografia, ao invés de comentário.
Abraço,
Jorge

Marco Bastos disse...

Recebi do amigo, Dr. Otacílio de Barros Gomes,Salvador/Bahia, esse poema que revela sua admiração pela obra de Oscar Wilde. Belo poema. Parabéns.

Não vivo da Literatura.
Dela não sou profissional.
Sou um mero diletante
não lhe faço bem nem mal...

Wilde escreveu o ideal:
nos livros - a alma pura;
na vida - o gênio indócil
e na arte pela arte -
a verve, a literatura...

Sua declaração de renda
bem material não registrara.
De Wilde - diz uma lenda -
só o talento se escancara.

Poesia - a grande aliada,
conheceu-a como ninguém
com ou sem metro,
seu lirismo profundo
a graça e a beleza tem...

Paris estreia SALOMÉ -
densa sinfonia de ato só...
Do cárcere, O.W., em lágrimas
de alegria,exulta e chora
num canto do xilindró...

Gide, no seu In Memoriam,
enxuga as lágrimas do esteta.
E, em palavras claras e didatas
nos faz compreender
a dor que estala
no peito agônico do Poeta!...

Sarah Bernhardt declama SALOMÉ
ante plateia fina e culta....
Wilde, in carcere et vinculis,
a enorme dor sepulta...

Disse: O.W. chora e exulta
do Presídio de Reading...
Ali floresceu...floresceu...
floruit tão verde ontem e hoje
tão in ces san te men te
como amanhã...

e viveu
e sonhou
na masmorra inculta....

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Que mais disse o poeta?
-Não o sabemos nunca.
ÀS vezes disse coisas espantosas,
Impossível compreendê-las...
Mais fácil: ouvir estrelas...

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Muito obrigado, Dr. Otacílio.
abraços do amigo
Marco Bastos.